quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O infarto



"Blue nude - Pablo Picasso"

Ele se olhou no espelho, viu um estranho. Quisera ser como os cachorros, que vivem em ciclos iguais de rotina. Não suportava a pressão de ter que viver novas experiências dia após dia. O desconhecido o assustava devido ao seu pessimismo e desconfiança com relação ao destino e já não esperava mais nada de ninguém.

Parou de se alimentar. Engolir a comida o chateava, e decidir o que comer era um martírio. Vivia entre a dura decisão entre o que gostava e o que lhe fazia bem para a saúde. Pensando agora soa estranho, do que vale boa saúde em um suicida?

Não, ele não se mataria. Não tinha coragem suficiente. A vida toda fora covarde e continuaria a se arrastar pelo resto de seus dias, fingindo ser o que não era. sorrindo para todos com uma máscara de espinhos cravada em sua face. Engoliria toda a amargura daquela existência e na velhice, já com os seus netos dançando diante de si, saberia então que valeu a pena cada segundo.

Chamou então a esposa, com quem dividiu a alma, e tentaria em vão lhe transmitir o que sentia. Consciente disso, a abraçaria com os olhos ainda secos, seu peito apertando cada vez mais e o desejo do desconhecido renascendo de sua recém-nascida fé em Deus.

Morreu em paz.

domingo, 18 de outubro de 2009

A traição



Meninos Brincando, Portinari, 1955

Ele já sabia o que iria acontecer. Quando abrisse aquela porta, a imagem que sua retina iria refletir já estava em sua mente, seria apenas um dejà ju. Mesmo assim, tremeu ao tocar o frio metálico da maçaneta.

O giro da engrenagem cortou o silêncio de sua casa, e hesitou por um momento antes de escancarar a porta. Quando o fez, porém, arrependeu-se de não ter tido a coragem de virar às costas e ir embora sem nunca mais falar com ela.

Trocaria o número do celular, não, jogaria o celular no rio. Era homem suficiente para ter uma atitude irracional de vez em quando, apenas quando a situação exigisse. Ela o procuraria nos hospitais, ligaria para a polícia, iria até mesmo nos necrotérios da cidade. A incerteza seria seu castigo. O sofrimento dela seria inúmeras vezes maior que o dele, que conhecia o início meio e fim da história, por mais dolorosa que ela fosse, estava pronta para ser resolvida em sua mente.

Sua auto-estima já estava recuperada 3 meses depois do incidente. Aguardava, com uma certa ansiedade, sua próxima viagem. Chegaria em casa novamente de surpresa e sentiria o mesmo frio metálico nas mãos. Mas dessa vez não se arrependeria de mais nada.

-Benzinho, me traz um copo d'água?

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O gafanhoto verde e o pequeno dragão


"Os Operários, Tarsila do Amaral"

Os treinei nos caminhos da sabedoria, com paciência e ousadia nos momentos certos. Gafanhoto estava sempre logo atrás de mim, sempre observando atento. Afeiçoei-me a ele, e ele a mim. Ia firme e irresoluto em cada passo que eu dava, ele adquiriu confiança em mim. E eu lhe ensinei tudo o que sabia. O pequeno dragão era mais distante, acabei por não dar muita atenção a ele.

Quando já não havia mais nada a ensinar, o gafanhoto se foi. Entristeci-me no início, mas logo me conformei, como mãe-pássaro que observa contida seus filhotes alçarem vôo.

Logo, o pequeno dragão seguiu o mesmo destino. Era impaciente, depois fui descobrir. Mas tudo correu bem e mesmo sem ter certeza, creio que seguiram com segurança seu destino até o fim.