terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

[escrito num péssimo dia]

Hoje eu fui assaltado. Na intimidade da minha casa entraram pessoas que já não podem ser chamadas pessoas, desvirtuadas de todo e qualquer resquício de humanidade. Invadiram pela força de armas de fogo, a mais estúpida das invenções já criadas, e muito mais que objetos, levaram minha crença no ser humano. As minhas utópicas justificativas para a criminalidade, nas quais o iníquo capitalismo era o grande bode expiatório caíram por terra ao ver a mira de um revólver na cabeça de meus familiares. Não, não se trata de erros do sistema, a responsabilidade do individuo que se permite fazer tamanha covardia jamais pode ser exaurida, a detenção de tal classe de deturpados sociais deve ser imposta, a existência da conturbada organização policial encontra razão de ser, mesmo com suas tantas transgressões ao que considero essencial: liberdade e justiça.

Tive vontades de matar, como quem conserta um aparelho defeituoso. Tive vontades de morrer, deixando para trás a mesquinha existência que nos torna cúmplices de todos. O vazio dos objetos no lugar que outrora ocupavam refletia o vazio da minha alma, furtada de sua dignidade. A desordem do que não puderam ou não quiseram levar simbolizando minha esparramada impotência frente ao inesperado, revolta silenciada pelo medo do fim súbito e gratuito.

Mero fantoche nas imprudentes mãos do acaso. Não sou mais que isso, cego atravessando vias rápidas, criança que brinca no parapeito da janela. Insistir na remendada venda que cobre meus olhos, colorida com a ilusão da segurança fardada é tudo o que me resta. Vejo-me atleta cansado em corrida de obstáculos que teimam em crescer com minha aproximação, desejosos da queda fatal.

Diminuído, apalermado, aguardo a infalível resignação, passaporte barato para meu retorno à mascarada rotina que tal qual folhas outonais recobre pouco a pouco o solo da minha indignação.

Droga Pesada

[O texto abaixo é de autoria do Dr. Drauzio Varella, adicionei uma ou outra coisinha, vale a pena ler.]

Fui dependente de nicotina durante 20 anos. Comecei ainda adolescente, porque não sabia o que fazer com as mãos quando chegava às festas. Era início dos anos 60, e o cigarro estava em toda parte: televisão, cinema, outdoors e com os amigos. As meninas começavam a fumar em público, de minissaia, com as bocas pintadas assoprando a fumaça para o alto. O jovem que não fumasse estava por fora.

Um dia, na porta do colégio, um amigo me ensinou a tragar. Lembro que fiquei meio tonto, mas saí de lá e comprei um maço na padaria. Caí nas mãos do fornecedor por duas décadas; 20 cigarros por dia, às vezes mais.

Fiz o curso de medicina fumando. Naquela época, começavam a aparecer os primeiros estudos sobre os efeitos do cigarro no organismo, mas a forte indústria americana tinha equipes de médicos encarregados de contestar sistematicamente qualquer pesquisa que ousasse demonstrar a ação prejudicial do fumo. Esses cientistas de aluguel negavam até mesmo que a nicotina provocasse dependência química, desqualificando o sofrimento da legião de fumantes que tentam largar e não conseguem.

Nos anos 70, fui trabalhar no Hospital do Câncer de São Paulo. Nesse tempo, a literatura cientifica havia deixado clara a relação entre o fumo e diversos tipos de câncer: de pulmão, esôfago, rim, bexiga e os tumores de cabeça e pescoço. Já se sabia até que, de cada três casos de câncer, pelo menos um era provocado pelo cigarro. Apesar do conhecimento teórico e da convivência diária com os doentes, continuei fumando.

Na irresponsabilidade que a dependência química traz, fumei na frente dos doentes a quem recomendava abandonar o cigarro. Fumei em ambientes fechados diante de pessoas de idade, mulheres grávidas e crianças pequenas. Como professor de cursinho durante quase 20 anos, fumei nas salas de aula, induzindo muitos jovens a adquirir o vício. Quando me perguntavam: “Mas você é cancerologista e fuma?”, eu ficava sem graça e dizia que ia parar. Só que esse dia nunca chegava. A droga quebra o caráter do dependente.

A nicotina é um alcalóide. Fumada, é absorvida rapidamente nos pulmões, vai para o coração e através do sangue arterial se espalha pelo corpo todo e atinge o cérebro. No sistema nervoso central, age em receptores ligados às sensações de prazer. Esses, uma vez estimulados, comunicam-se com os circuitos de neurônios responsáveis pelo comportamento associado à busca do prazer. De todas as drogas conhecidas, é a que mais dependência química provoca. Vicia mais do que o álcool, maconha, cocaína, morfina e crack. E vicia depressa: de cada dez adolescentes que experimentam o cigarro quatro vezes, seis se tornam dependentes para o resto da vida.

A droga provoca crise de abstinência insuportável. Sem fumar, o dependente entre num quadro de ansiedade crescente, que só passa com uma tragada. Enquanto as demais drogas dão trégua de dias, ou pelo menos muitas horas, ao usuário, as crises de abstinência da nicotina se sucedem em intervalos de minutos. Para evitá-las, o fumante precisa ter o maço ao alcance da mão; sem ele, parece que está faltando uma parte do corpo. Como o álcool dissolve a nicotina e favorece sua excreção por aumentar a diurese, quando o fumante bebe, as crises de abstinência se repetem em intervalos tão curtos que ele mal acaba de fumar um, já acende outro.

Em 30 anos de profissão, assisti às mais humilhantes demonstrações do domínio que a nicotina exerce sobre o usuário. O doente tem um infarto do miocárdio, passa três dias na UTI entre a vida e a morte e não pára de fumar, mesmo que as pessoas mais queridas implorem. Sofre um derrame cerebral, sai pela rua de bengala arrastando a perna paralisada, mas com o cigarro na boca. Na vizinhança do Hospital do Câncer, cansei de ver doentes que perderam a laringe por câncer levantarem a toalhinha que cobre o orifício respiratório aberto no pescoço, aspirarem e soltarem a fumaça por ali.

Existe uma doença, exclusiva de fumantes, chamada tromboangeíte obliterante, que obstrui as artérias das extremidades e provoca necrose dos tecidos. O doente perde os dedos do pé, a perna, uma coxa, depois a outra, e fica ali na cama, aquele toco de gente, pedindo um cigarrinho pelo amor de Deus.

Mais de 95% dos usuários de nicotina começam a fumar antes dos 25 anos, a faixa etária mais vulnerável às adições. A imensa maioria comprará um maço por dia pelo resto de suas vidas, compulsivamente. Atrás desse lucro cativo, os fabricantes de cigarro investem fortunas na promoção do fumo para os jovens: personagens hollywoodianos, atitude rebelde do rock, marketing pesado onde ainda não foi proibido ou onde ainda pode ser disfarçado.

O fumo é o mais grave problema de saúde pública no Brasil. Os impostos pagos pela indústria do tabaco não são suficientes para sequer cobrir os gastos hospitalares públicos. Mesmo assim, a droga permanece lícita, contrariando o bom-senso e perpetuando o imperialismo cultural norte-americano, onde residem os maiores interessados no vício da nicotina, seja no Brasil ou em qualquer outro país.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Domingo

- Pausa, me deu sede. Abro a geladeira, surge a dúvida "tomo no gargalo ou no copo?" decido pela coletividade, apanho um copo do escorredor (minhas mãos ainda fediam detergente) e encho de água gelada. Ainda no terceiro gole, a frase do apresentador me chama a atenção "Agora, no Se vira nos 30, dança no (sic)ventre!" decidi que valia a pena uma pequena caminhada até a sala para contemplar na tela um talento de alguma bela odalisca que já imaginava em trajes verdes lantejoulados. Qual foi a minha surpresa quando ao focar os olhos (depois de admirar as dançarinas no palco) no centro do aparelho, a imagem pavorosa de um andrógino nascido homem pelo que pude perceber, travestido de véus e saias preparando-se para dançar! não podendo conter mais a indignação, pressionei o "power" com firmeza e saí resmungando obcenidades para a globo. Subi as escadas, em direção ao PC, me deparo com meu irmão no quarto que atenta ao televisor onde o mesmo obeso apresentador narra os últimos 5 segundos do absurdo. Quase desisti. mas não! imediatamente repreendi o parente próximo, argumentando que mudasse de canal, me dá o controle "-0, 04" ´pronto! o dissecamento da história do avô que salvou o neto do ataque de uma sucuri é muito mais interessante, e ainda mostra cenas de ataques reais, o sensacionalismo transborda. Fico incrédulo diante da falta de pudor do programa dominical vespertino do SBT, filmar o repórter apavorado sendo atacado por uma cobra durante reportagem na Amazõnia, vá lá. mas botar uma cobra no meio do palco no domingo seguinte e flertar com a hipótese do citado repóter entrar no cercadinho e ter uma revanche, é demais! O afeminado apresentador suplicava que não, mas a interpretação não convencia. Por fim, não sei se houve revanche ou não. Só sei que TV no domingo a tarde nunca mais!

PS: eu avisei meu irmão que ele seria citado.