terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Droga Pesada

[O texto abaixo é de autoria do Dr. Drauzio Varella, adicionei uma ou outra coisinha, vale a pena ler.]

Fui dependente de nicotina durante 20 anos. Comecei ainda adolescente, porque não sabia o que fazer com as mãos quando chegava às festas. Era início dos anos 60, e o cigarro estava em toda parte: televisão, cinema, outdoors e com os amigos. As meninas começavam a fumar em público, de minissaia, com as bocas pintadas assoprando a fumaça para o alto. O jovem que não fumasse estava por fora.

Um dia, na porta do colégio, um amigo me ensinou a tragar. Lembro que fiquei meio tonto, mas saí de lá e comprei um maço na padaria. Caí nas mãos do fornecedor por duas décadas; 20 cigarros por dia, às vezes mais.

Fiz o curso de medicina fumando. Naquela época, começavam a aparecer os primeiros estudos sobre os efeitos do cigarro no organismo, mas a forte indústria americana tinha equipes de médicos encarregados de contestar sistematicamente qualquer pesquisa que ousasse demonstrar a ação prejudicial do fumo. Esses cientistas de aluguel negavam até mesmo que a nicotina provocasse dependência química, desqualificando o sofrimento da legião de fumantes que tentam largar e não conseguem.

Nos anos 70, fui trabalhar no Hospital do Câncer de São Paulo. Nesse tempo, a literatura cientifica havia deixado clara a relação entre o fumo e diversos tipos de câncer: de pulmão, esôfago, rim, bexiga e os tumores de cabeça e pescoço. Já se sabia até que, de cada três casos de câncer, pelo menos um era provocado pelo cigarro. Apesar do conhecimento teórico e da convivência diária com os doentes, continuei fumando.

Na irresponsabilidade que a dependência química traz, fumei na frente dos doentes a quem recomendava abandonar o cigarro. Fumei em ambientes fechados diante de pessoas de idade, mulheres grávidas e crianças pequenas. Como professor de cursinho durante quase 20 anos, fumei nas salas de aula, induzindo muitos jovens a adquirir o vício. Quando me perguntavam: “Mas você é cancerologista e fuma?”, eu ficava sem graça e dizia que ia parar. Só que esse dia nunca chegava. A droga quebra o caráter do dependente.

A nicotina é um alcalóide. Fumada, é absorvida rapidamente nos pulmões, vai para o coração e através do sangue arterial se espalha pelo corpo todo e atinge o cérebro. No sistema nervoso central, age em receptores ligados às sensações de prazer. Esses, uma vez estimulados, comunicam-se com os circuitos de neurônios responsáveis pelo comportamento associado à busca do prazer. De todas as drogas conhecidas, é a que mais dependência química provoca. Vicia mais do que o álcool, maconha, cocaína, morfina e crack. E vicia depressa: de cada dez adolescentes que experimentam o cigarro quatro vezes, seis se tornam dependentes para o resto da vida.

A droga provoca crise de abstinência insuportável. Sem fumar, o dependente entre num quadro de ansiedade crescente, que só passa com uma tragada. Enquanto as demais drogas dão trégua de dias, ou pelo menos muitas horas, ao usuário, as crises de abstinência da nicotina se sucedem em intervalos de minutos. Para evitá-las, o fumante precisa ter o maço ao alcance da mão; sem ele, parece que está faltando uma parte do corpo. Como o álcool dissolve a nicotina e favorece sua excreção por aumentar a diurese, quando o fumante bebe, as crises de abstinência se repetem em intervalos tão curtos que ele mal acaba de fumar um, já acende outro.

Em 30 anos de profissão, assisti às mais humilhantes demonstrações do domínio que a nicotina exerce sobre o usuário. O doente tem um infarto do miocárdio, passa três dias na UTI entre a vida e a morte e não pára de fumar, mesmo que as pessoas mais queridas implorem. Sofre um derrame cerebral, sai pela rua de bengala arrastando a perna paralisada, mas com o cigarro na boca. Na vizinhança do Hospital do Câncer, cansei de ver doentes que perderam a laringe por câncer levantarem a toalhinha que cobre o orifício respiratório aberto no pescoço, aspirarem e soltarem a fumaça por ali.

Existe uma doença, exclusiva de fumantes, chamada tromboangeíte obliterante, que obstrui as artérias das extremidades e provoca necrose dos tecidos. O doente perde os dedos do pé, a perna, uma coxa, depois a outra, e fica ali na cama, aquele toco de gente, pedindo um cigarrinho pelo amor de Deus.

Mais de 95% dos usuários de nicotina começam a fumar antes dos 25 anos, a faixa etária mais vulnerável às adições. A imensa maioria comprará um maço por dia pelo resto de suas vidas, compulsivamente. Atrás desse lucro cativo, os fabricantes de cigarro investem fortunas na promoção do fumo para os jovens: personagens hollywoodianos, atitude rebelde do rock, marketing pesado onde ainda não foi proibido ou onde ainda pode ser disfarçado.

O fumo é o mais grave problema de saúde pública no Brasil. Os impostos pagos pela indústria do tabaco não são suficientes para sequer cobrir os gastos hospitalares públicos. Mesmo assim, a droga permanece lícita, contrariando o bom-senso e perpetuando o imperialismo cultural norte-americano, onde residem os maiores interessados no vício da nicotina, seja no Brasil ou em qualquer outro país.

Nenhum comentário:

Postar um comentário